Este é um caderno de notas, de apontamentos — vamos aprender latim.
É um curso para amadores — amadores no sentido etimológico do termo: "amador" é "aquele que ama", aquele que ama a língua latina e quer aprendê-la.
Este é um caderno de notas, de apontamentos — vamos aprender latim.
É um curso para amadores — amadores no sentido etimológico do termo: "amador" é "aquele que ama", aquele que ama a língua latina e quer aprendê-la.
Os Carmina Burana são poemas, em latim, musicados pelo compositor alemão Carl Orff.
Na Idade Média distante, uns boémios, os goliardos (clérigos vagabundos e estudantes), cantavam e tocavam pela noite, nas ruas das cidades, poemas normalmente em latim medieval, satíricos, amorosos, criticando a igreja e a sociedade; eram poemas contra o poder estabelecido, amaldiçoando a sorte e louvando a vida, as tabernas e o vinho, o jogo e o amor, as mulheres. Estes “poetas” percorreram a Idade Média, eram, na sua maioria, estudantes das universidades de Espanha, de França, de Itália, de Inglaterra, da Alemanha. Eram, em geral, poemas curtos, mas também outros mais longos.
Desses poemas, Carl Orff, no século XX, fez uma selecção e compôs uma cantata — os Carmina1 Burana (apresentada em 1937, em Frankfurt) — são os Poemas de Beuern, abreviatura de Benediktbeuern, (Burana é o adjectivo em latim), uma cidade da Baviera.
Nota 1:carmĭna “poemas”, plural de carmen, carmĭnis (nome neutro) - a penúltima sílaba é breve, logo, a sílaba acentuada é a antepenúltima – car-
O poema de abertura dirige-se à deusa FORTUNA, a Sorte.
O Fortuna velut luna statu variabilis, semper crescis aut decrescis; vita detestabilis nunc obdurat et tunc curat ludo mentis aciem, egestatem, potestatem dissolvit ut glaciem.
Sors immanis et inanis, rota tu volubilis, status malus, vana salus semper dissolubilis, obumbrata et velata mihi quoque niteris; nunc per ludum dorsum nudum fero tui sceleris.
Sors salutis et virtutis mihi nunc contraria, est affectus et defectus semper in angaria. Hac in hora sine mora corde pulsum tangite; quod per sortem sternit fortem, mecum omnes plangite!
Ó Fortuna tal como a Lua de estado variável, tu cresces e decresces sem cessar; vida detestável agora oprime e logo restabelece como um jogo, da mente a agudeza, a miséria, o poder, dissolve como o gelo.
Sorte cruel e vazia, tu, uma roda que gira, má condição, vã salvação sempre instável, sombria e velada também a mim tu atinges; agora por graça o dorso nu eu levo do teu infortúnio.
Sorte da saúde e da virtude agora para mim contrária, é afecto
e desafecto sempre em dívida. Nesta hora sem demora tangei a corda com coragem; porque a sorte derruba o forte, chorai todos comigo!
Séneca, filósofo (c.4 a.C. – 65 d.C.), Lúcio Aneu Séneca, o Jovem (para o distinguir do pai, Séneca, o Velho, o retórico), estudou em Roma retórica e filosofia e alcançou elevada consideração como orador e como escritor, chegando a ser o preceptor do futuro imperador Nero.
Deixou uma vasta obra e dela se destacam as Cartas a Lucílio, um conjunto de 124 cartas dirigidas ao seu amigo Lucílio, desenvolvendo variadíssimas questões filosóficas. Temas como a felicidade, o medo, a riqueza, a morte, a vida e os seus valores, o bem e o mal, a educação, entre muitos outros, dão-nos também a sua visão pessoal da época em que vivia.
Dessas cartas podemos extrair ensinamentos para o nosso tempo, como o que está presente na frase que se segue, na qual mostra a importância da sociedade na ajuda e no equilíbrio individual — sozinhos somos fracos, unidos tornamo-nos fortes:
Societas nostra lapidum fornicationi simillima est, quae, casura nisi in uicem obstarent, hoc ipso sustinetur.
Séneca, Cartas a Lucílio, 95, 53
Vocabulário:
fornicatio, fornicationis: abóbada
lapis, lapidis (f.): pedra
similis, simile : semelhante (com o seu complemento em dativo)
casura : particípio futuro do verbo cado, is, ere, cecidi, casum: cair
in uicem : alternadamente, por sua vez, sucessivamente - de uicis, genitivo de uix (nominativo desusado)
obstare : impedir; pôr obstáculo
sustinere : manter, resistir
Tradução:
A nossa sociedade é muito semelhante a uma abóbada de pedras, que iria cair se não pusessem obstáculos umas às outras, por isso mesmo se sustém.
Ou:
“A sociedade humana assemelha-se em tudo a um arco abobadado: as pedras que, sozinhas, cairiam, sustentam-se mutuamente, e assim conseguem manter-se firmes!”
Tradução de Segurado e Campos, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
Mas a língua tem as suas cambiantes e prega-nos partidas; por isso conhecer a etimologia é sempre muito importante:
Da família de fornicatio é este outro substantivo:
fornix, fornicis: arco, arco de ponte; abóbada; arco triunfal
Segundo o Dictionnaire étymologique de la Langue Latine de Ernout-Meillet, na época imperial, o sentido de “arco triunfal” começa a ser substituído pelo vocábulo “arcus” e “fornix” é mais utilizado no sentido de “abóbada subterrânea” e especialmente “quarto abobadado” como os que eram habitados pelas pessoas de baixa condição social e pelas prostitutas. Daí ter passado a ser usado, na linguagem popular, com este significado e, especialmente, entre os cristãos. É também com este sentido que palavras desta família, como o verbo fornicare, aparecem em Plínio e mesmo em Horácio (fornix: lugar de prostituição, lupanar, aparece nas Sátiras de Horácio) e no autor cristão Tertuliano, por exemplo. Em Vitrúvio aparece apenas no sentido arquitectónico.
Em português, temos, na linguagem arquitectónica, fórnice “abóbada ou arco de porta”
E, tendo em conta a estrutura arqueada, na anatomia aparece o mesmo termo,fórnice, como:
— “fundo do saco entre o colo uterino e as paredes da vagina”;
— “trígono cerebral”
— “O fórnix ou trígono é um conjunto de fibras nervosas do cérebro que faz parte do sistema límbico, envolvido na emoção, motivação e memória de longo prazo.”
(in https://pt.sainte-anastasie.org/articles/neurociencias/frnix-o-trgono-cerebral-anatoma-y-funciones.html )
1. Substantivos de tema em consoante (3.ª declinação)
— societas, societatis — tema em dental : societat- (tirando a terminação -is de genitivo encontramos o tema da palavra); nominativo sigmático — forma-se acrescentando ao tema um -s [societat- s — a dental é assimilada pela sibilante -s, daí societas ]
— lapis, lapidis — tema em dental: lapid- [ igualmente nominativo sigmático ].
— fornicatio, fornicationis — tema em consoante nasal -n : fornication- [nominativo assigmático, é igual ao tema, mas a nasal cai, daí fornicatio]
Declinação
Singular Plural
Nominativo lapis lapides
Vocativo lapis lapides
Genitivo lapidis lapidum
Acusativo lapidem lapides
Dativo lapidi lapidibus
Ablativo lapide lapidibus
*************
2. Graus dos adjectivos — o superlativo
a.
— simillima : superlativo do adjectivo similis, simile : semelhante
Adjectivos terminados em – ilis, formam o superlativo com o sufixo – illimus, a, um
O particípio futuro é uma forma nominal do verbo; declina-se como um adjectivo da 1º classe e forma-se a partir do radical do supino acrescentando o sufixo – urus, - ura, - urum
Continuando com Ovídio e os seus poemas do exílio.
Ainda a elegia IX do Livro I
Depois dos lamentos sobre o abandono dos amigos em tempos menos felizes, o poeta estabelece comparações:
aspicis, ut ueniant ad candida tecta columbae, accipiat nullas sordida turris aues. horrea formicae tendunt ad inania numquam: nullus ad amissas ibit amicus opes.
Tristia, I, IX.
Começa com uma forma verbal na 2ª pessoa do singular:
— aspicis : do verbo aspicio ou adspicio (composto de ad + specio) : olhar, examinar; considerar
O poeta convida o leitor a considerar estes exemplos que comprovam o que ele afirmou nos versos anteriores.
considera / vê / observa ....
ut : que [ as orações que se seguem têm o verbo no modo comjuntivo: ueniant, accipiat
Atente-se, então, nos contrastes dos 4 versos:
Columbae ueniant ad candida tectacolumba, ae : pomba ; candidus, a, um : branco, belo
Turris sordida accipiat nullas aues turris, is : torre ; sordidus, a, um : sujo ; accipio, is, ere : receber
Formicae tendunt horrea .... nunquam ad inania
Nullus amicus ibit ad amissas opes
1º verso:
— sujeito do verbo de movimento — ueniant — : columbae
— ad candida tecta : complemento de ueniant — indica o lugar para onde vêm
Tradução: as pombas vêm para os telhados/casas brancos(as)
2º verso:
— sujeito: turris sordida
— nullas aues — complemento directo de accipiat
Tradução: uma torre suja não recebe nenhumas aves
—— Veja-se como candida tecta (casas brancas/limpas) se opõe a turris sordida (torre suja)
3º verso:
— sujeito : formicae — sujeito de tendunt formica, ae : formiga ; tendo, is, ere : dirigir, dirigir-se; procurar
— horrea .... ad inania (ad horrea inania): lugar para onde horreum, i (n.): celeiro ; inanis, inane : vazio
Tradução: as formigas nunca se dirigem para os celeiros vazios
4º verso:
— sujeito: nullus amicus — da forma verbal ibit ( futuro do verbo ire : ir)
— ad amissas opes : complemento de lugar para onde (ad+ acusativo)
amissus, a, um : particípio passado de amitto, is, ere, amisi, amissum (perder)
opes, opum : recursos, riqueza
Tradução: nenhum amigo irá/se dirigirá para os recursos perdidos/ as riquezas arruinadas
Tradução dos 4 versos:
Vê como as pombas procuram
as casas limpas e uma torre imunda
nenhuma ave recebe. As formigas nunca se dirigem
para os celeiros vazios e nenhum amigo
correrá para as fortunas arruinadas.
(tradução de Albano Martins)
E continuam as comparações nos versos seguintes:
utque comes radios per solis euntibus umbra est, cum latet hic pressus nubibus, illa fugit, mobile sic sequitur Fortunae lumina uulgus: quae simul inducta nocte teguntur, abit.
Tradução de Albano Martins:
Como a sombra que nos acompanha quando
caminhamos aos raios do sol e que,
quando uma nuvem o oculta, foge,
assim o vulgo inconstante segue o brilho
da fortuna e vai-se quando a chegada
duma nuvem o obscurece.
Exercícios:
Confronte o texto latino com a tradução:
A que palavras latinas corresponde a tradução “a sombra que nos acompanha”?
Quais as palavras que foram traduzidas por “vulgo inconstante”
Qual a palavra latina para “raios” (do sol)?
Atente nos vocábulos:
- umbra (umbra, umbrae)
- nubibus (nubes, nubis)
- lumina (lumen, luminis)
5.1. Encontre palavras portuguesas que, pela etimologia, se relacionem com estas palavras latinas.
Do seu exílio junto ao Mar Negro, Ovídio escreve um conjunto de poemas dirigidos à mulher e aos amigos, poemas reunidos sob o título de “Tristia”, “coisas tristes”, representando os dias de tristeza do poeta, nessa terra distante, sozinho e esquecido.
Nascido em Sulmona, no ano 43 a.C., Ovídio viria a falecer em Tomos, nas costas do Mar Negro (cidade correspondente à actual Constança, na Roménia), onde chegou no ano 8 d.C., cumprindo o exílio decretado pelo imperador Augusto. O volume Tristia reúne um conjunto de poemas compostos nesses anos de exílio. Neles o poeta descreve o ambiente que o rodeia, lamenta a sua sorte, fala do abandono, da saudade de Roma, dos amigos e da família e pede que intercedam por ele para que possa regressar.
No livro I, a Elegia Nona começa assim:
Que a ti, que lês esta obra como amigo,
te seja concedido atingir sem desgostos
o termo da vida! E oxalá que para ti
possam cumprir-se os votos que para mim
os deuses insensíveis não lograram.
(tradução de Albano Martins, Ed. Afrontamento, 2017)
E continua o seu lamento nos versos seguintes:
donec eris sospes, multos numerabis amicos: tempora si fuerint nubila, solus eris.
Vocabulário:
donec (conjunção temporal) : enquanto (tem o verbo no modo indicativo)
sospes, sospitis (adjectivo uniforme): são e salvo; propício; feliz
nubilus, a, um (adjectivo): coberto de nuvens; nublado; sombrio
solus, a, um (adjectivo): só; solitário; sozinho
Formas do verbo esse — verbo irregular: sum, es, esse, fui
eris : 2ª pessoa do sing. do futuro imperfeito
fuerint : 3ª pessoa do plural do futuro perfeito
Todas as formas verbais destes dois versos se encontram no tempo futuro: 3 formas do verbo irregular esse (eris, fuerint, eris)
Uma forma do verbo numerare (verbo de tema em -a): numerabis (2ª pessoa do singular)
Analisemos:
— oração 1ª - a afirmação : numerabis multos amicos [ o sujeito é tu, visto que o verbo está na 2ª pessoa do singular];
A tradução é simples: tu contarás muitos amigos
— dependente desta ideia vem a oração que se encontra no início da frase: donec eris sospes
Trata-se de uma oração temporal, introduzida pela conjunção donec ; o verbo está no modo indicativo — eris “serás, estarás” — ;
Para a tradução, no entanto, há que ter atenção a construção da frase em português e a sua estrutura em termos de relação tempo/modo.
A conjunção “enquanto” exige, em português, a forma verbal no modo conjuntivo – neste caso tempo futuro (refere-se a uma acção que poderá acontecer no futuro, aqui numa oração temporal, dependente de uma oração principal no futuro)
logo: tu contarás muitos amigos, enquanto fores feliz
Mantendo a ordem do verso:
Enquanto fores feliz, contarás muitos amigos
Passando ao 2º verso:
tempora si fuerint nubila, solus eris.
Começa, de novo, pela oração subordinada, tendo de seguida a oração principal.
Logo:
— solus eris : estarás sozinho [ em oposição a multos numerabis amicosdo verso anterior]
— si tempora fuerint nubila
Temos, agora, uma oração condicional, introduzida pela conjunção si .
A forma verbal — fuerint — encontra-se no futuro perfeito, modo indicativo [ o futuro perfeito designa uma acção futura concluída antes de outra acção futura — assim, a acção indicada nesta oração condicional estará completa antes daquela que é apresentada na oração principal — ... tempora nubila fuerint ... solus eris ]
Tradução:
Se os tempos forem sombrios, estarás só
É esse o lamento do poeta desiludido: quando vivia em Roma, vivia bem, tinha uma vida de glória motivada pela sua arte, tinha muitos amigos; agora, longe da pátria, sem influências políticas e sociais, sente-se abandonado pelos amigos, num momento em que mais precisava deles
Enquanto fores feliz, contarás numerosos amigos:
se os tempos se tornarem nublados,
ficarás só.
(tradução de Albano Martins)
Sintetizando os aspectos gramaticais:
Flexão verbal:
Verbo irregular: esse Verbo de tema em - a : numerare
Na sequência do post anterior, voltemos à República de Ragusa, onde, no século XIV, se estabeleceram as regras de quarentena
Interessante, também, o Lema da República de Ragusa:
Non bene pro toto libertas venditur auro
Vemos aqui a defesa de um valor universal — a LIBERDADE
O lema diz que “ a liberdade não se vende”
a.
Iniciada pela negativa non , a frase tem como sujeito libertas
libertas — sujeito de uenditur /venditur
libertas, libertatis (nome da 3ª declinação, tema em consoante – dental – t ) – veja-se o post anterior sobre a formação do nominativo sigmático
uenditur — forma passiva do verbo: uendo, uendis, uendere, uendidi, uenditum “vender”
libertas non uenditur : a liberdade não é vendida / não se vende
recordar como se enuncia um verbo — dizendo: a 1ª pessoa do singular do presente do indicativo (uendo), a 2ª pessoa do singular do mesmo presente do indicativo (uendis), o infinitivo presente(uendere), a 1ª pessoa do singular do pretérito perfeito (uendidi ), o supino (uenditum)
Este verbo é de tema em consoante — olhando para o infinitivo uendere , a vogal e da penúltima sílaba – de – é uma vogal breve, é uma vogal de ligação, logo, o tema do verbo é uend-
+++++++
Vejamos a conjugação do presente do indicativo na voz passiva:
uendor
uenderis entre o tema e a desinência pessoal, quando esta começa por consoante, introduz-se
uenditur uma vogal de ligação : uend – i - tur
uendimur
uendimini
uenduntur
b.
pro toto auro : por todo o ouro/em troca de todo o ouro
a preposição pro rege um ablativo (toto auro) e tem o sentido de “em troca de, por, em favor de”
o adjectivo totus, tota, totum significa “todo”, “inteiro” (indica a totalidade, a duração total)
sentido diferente de omnis, omne “todo”
Logo, toto auro indica todo o ouro que existe, a totalidade do ouro, todo o ouro do mundo
aurum, auri (neutro, 2ª declinação): ouro
[ símbolo químico do ouro : au ]
Veja-se a diferença:
omnes noctes : todas as noites
totae noctes : noites inteiras
Tradução:
— Felizmente a liberdade não se vende por todo o ouro do mundo
********
Esta mesma expressão é citada no Prólogo que Miguel Cervantes dirige ao “Desocupado Leitor” da sua obra D. Quixote e vem a propósito das citações que sempre devem ser feitas:
“Enquanto ao negócio de citar nas margens do livro os nomes dos autores, dos quais vos aproveitardes para inserirdes na vossa história os seus ditos e sentenças, não tendes mais que arranjar-vos de maneira que venham a ponto algumas dessas sentenças, as quais vós saibais de memória, ou pelo menos que vos dê o procurá-las muito pouco trabalho, como será, tratando por exemplo de liberdade e escravidão, citar a seguinte: Non bene pro toto libertas venditur auro, ...”
Do latim ao português:
De libertas deriva a palavra portuguesa “liberdade”. Vejamos como se deu a evolução:
A grande maioria das palavras portuguesas deriva do acusativo latino, por isso se chama a este caso o caso etimológico.
Assim:
acusativo libertatem > libertate > liberdade
Que fenómenos fonéticos se deram aqui?
1º a queda do -m final de acusativo, fenómeno que sempre acontece, apócope (queda de um som no fim da palavra)
2º a passagem da consoante dental surda intervocálica – t – à dental sonora – d - , fenómeno a que se dá o nome se sonorização (as consoantes oclusivas surdas intervocálicas passam a sonoras)
A Repúbica de Ragusa — chamada primeiro Communitas Ragusina e mais tarde Respublica Ragusina — correspondente à actual Dubrovnik, na Croácia, estabeleceu, no século XIV, um regulamento para todos os que voltavam das regiões atacadas pela peste que então assolava, nomeadamente, a vizinha Itália.
Assim, elaborou um código de regras específicas com o título:
De ordinibus contra eos qui veniunt de locis pestiferis anno 1397 factis
Analisemos a frase que dá título a esse conjunto de regras:
De ordinibus ... factis (anno 1397) —————> contra eos
| qui ueniunt
| de locis pestiferis
a.
de ordinibus — introduz o assunto de que trata o texto
temos o substantivo ordo, ordinis ( 3ª declinação, tema em consoante), no ablativo do plural
de + ablativo — temos, neste caso, um complemento a que podemos chamar de assunto ou matéria de que se fala; é construção familiar no título de tratados, enunciando a matéria que texto irá tratar
Logo, este texto irá tratar “ das regras “
Concordando com ordinibus, temos, no fim da frase factis
b.
Vem depois o complemento de tempo (tempo em que) no ablativo — anno “no ano de 1397”
Portanto : sobre as regras feitas/elaboradas
Esta mesma construção está presente no título de inúmeros tratados de Cícero, por exemplo:
— De Oratore : sobre o orador
— De Natura Deorum : sobre a natureza dos deuses
— De Senectute : sobre a velhice
— De Amicitia : sobre a Amizade
c.
As regras diziam respeito, especificamente, a determinados indivíduos, eram : contra eos... qui ueniunt
contra (preposição) + acusativo eos (eos acusativo do plural, masculino, de is,ea,id ): contra aqueles que vêm
d.
temos depois, um outro complemento em ablativo regido da preposição de
de locis pestiferis
Este complemento, que se liga a um verbo de movimento – ueniunt – indica o lugar de origem (lugar donde)
Logo:
As normas/regras eram “contra aqueles que vêm dos lugares pestíferos/atacados pela peste”
Questões gramaticais a fixar :
Flexão nominal
A 3ª declinação
— temas em consoante, nomes com nominativo assigmático, nominativo igual ao tema:
orator, oratoris — tema: orator - (tema em consoante – r ); nominativo do singular: orator
ordo, ordinis — tema: ordin- < ordon- ( nos temas em nasal – n a nasal cai na formação do nominativo)
— temas em consoante, nominativo sigmático (forma-se o nominativo do singular acrescentando um – s ao tema)
senectus, senectutis — tema: senectut – (tema em consoante dental -t); nominativo do singular: senectut -s > senectus (o - s assimilou o - t)
— sujeito: Sol ( nome da 3ª declinação, sol, solis)
— verbo: lucet (3ª p.sing. indicativo presente):
luceo, luces, lúcere, luxi : brilhar; nascer (o sol)
— complemento: omnibus (dativo do plural).
omnis, omne: todo
Então, a tradução é simples: O sol brilha para todos.
Questões gramaticais:
O verbo presente na frase é de tema em – e
— encontramos o tema no infinitivo — lucere — tirando a terminação do infinitivo – re ; logo, fica luce- a terminar em -e
Vejamos a conjugação do verbo lucere em todas as pessoas do presente do indicativo:
luceo
luces
lucet
lucemus
lucetis
lucent
declinação de omnis, omne [ omnis é masculino e feminino; omne é neutro]
Singular Plural
Nominativo : omnis omne ; omnes omnia
Vocativo: omnis omne ; omnes omnia
Genitivo : omnis ; omnium
Acusativo: omnem omne ; omnes omnia
Dativo : omni ; omnibus
Ablativo: omni ; omnibus
Notas:
- este adjectivo já tinha aparecido no post anterior
- trata-se de um adjectivo classificado como biforme, quer dizer, no nominativo do singular apresenta duas formas, uma para o masculino e o feminino e outra para o neutro
- alguns casos têm uma só forma, visto que a terminação é igual qualquer que seja o género
Extensão de conhecimentos:
1. de omnibus vem a designação dos transportes colectivos, que são para todos:
- ónibus (português do Brasil)
- bus ( inglês)
2. Outras frases:
— Labor omnia uincit : o trabalho tudo vence [ omnia — acusativo do pl. neutro: todas as coisas, tudo]
— Amor omnia uincit : o amor tudo vence
3. A mesma expressão “sol lucet omnibus” é o lema de uma universidade:
A expressão lembra-nos a igualdade de direitos, neste caso, o direito cultura, à ciência
- em português temos a expressão equivalente:
— o sol quando nasce é para todos
Do Latim ao Português:
— omnis é elemento de formação dos vocábulos:
- omnipotente : que pode tudo
- omnipresente: que está em todo o lado
- omnisciente : que sabe tudo
- omnívoro : que come tudo (que se alimenta tanto de animais como de vegetais)
[ para estudar e rever as questões gramaticais tratadas neste post e no anterior, vá ao Arquivo deste blogue, ano 2014, e veja as lições dos meses de Fevereiro e Março ]
Provérbio latino frequente em relógios, especialmente nos antigos relógios de sol.
O provérbio refere-se ao tempo, às horas e à nossa passagem pela vida, contando essas horas.
ANALISANDO, TEMOS:
2 adjectivos:
omnes ( de omnis, omne : todo)
ultima (de ultimus, a, um : último)
2 formas verbais no presente do modo indicativo (uma no plural, outra no singular):
uulnerant ( de uulnero, as, are aui, atum: ferir)
necat ( de neco, as, are, aui, atum : matar)
Os adjectivos (o 1º no plural, o segundo no singular) subentendem um nome:
horae (a concordar com omnes)
hora (a concordar com ultima)
Tradução: Todas ferem, a última mata
O provérbio pretende alertar-nos para o efeito que o tempo tem em nós. Todas as horas que vivemos, bem ou mal, deixam as suas marcas. Há, portanto, que vivê-las o melhor possível para que a sua marca não seja uma ferida fatal, para assim podermos atrasar a “última”.
Não é, pois, de estranhar que este provérbio apareça, essencialmente, nos relógios, o símbolo da passagem do tempo
Outros relógios que falam:
Sine sole sileo
Aqui, aparece-nos o relógio transformado em ser animado.
Ele fala, temos um verbo na 1ª pessoa do singular:
sileo (1ª p. sing. do indicativo presente) : verbo sileo, es, ere, silui : calar; calar-se; descansar
sileo: eu calo-me; eu fico em silêncio
sine sole : temos a preposição sine (= sem) que rege um nome em ablativo — sole (de sol, solis : sol)
Então, o relógio diz de si próprio: Sem sol calo-me
O que significa isso?
— Trata-se de um relógio de sol, logo, só funciona se houver sol, uma vez que é a projeção da luz solar que indica as horas
— Mas isso poderá também levar-nos a reflectir sobre o tempo e o seu significado, levar-nos a observar cada dia com a sua importância específica, sobre a LUZ que o sol simboliza.
Do Latim ao Português:
1. Da mesma raiz do verbo uulnerare, o latim tem:
- o nome neutro, da 3ª declinação, tema em consoante uulnus, uulneris : ferida
- o adjectivo uulnerabilis, uulnerabile : vulnerável
Daí o português:
- vulnerável / invulnerável
- vulnerabilidade / invulnerabilidade
2. Da família de sileo temos, em latim:
- o nome neutro da 2ª declinação silentium, silentii : silêncio
- silens, silentis : particípio presente de sileo é o adjectivo: silencioso
O poeta diz-nos que, tal como a vida dos homens e das plantas, as palavras vão mudando, desaparecendo umas para dar lugar a outras.
Assim a língua é considerada um fenómeno natural:
Vt siluae foliis pronos mutantur in annos,
prima cadunt, ita uerborum uetus interit aetas,
et iuuenum ritu florent modo nata uigentque.
Horácio, Arte Poética, 60-62
Vejamos:
Temos, no 1º e 2º versos, os termos da comparação: ut siluae...ita uetus aetas uerborum...
pronus, prona, pronum : inclinado para a frente; que desce
proni anni : o findar do ano; o fim da estação
in annos pronos : no fim da estação/para o fim da estação; no findar dos anos
mutantur : 3ª pessoa do plural do presente do indicativo, voz passiva, de muto, as, are, aui, mutatum: mudar; transformar-se
(é no findar de cada ano que as florestas se transformam no que toca às folhas e as que caem primeiro são as mais velhas, as mais antigas)
cado, cadis, cadere, cecidi, casum : cair
prima — refere-se a folia ; folium, folii (neutro): folha
primus, prima, primum : aquele que está à frente de tudo; o primeiro (no tempo ou no espaço)
prima folia serão as folhas que estão à frente no tempo, que apareceram primeiro, logo, as mais antigas, as mais velhas
uetus, ueteris (adjectivo uniforme): velho; idoso; antigo; de outros tempos — daqui vem o português veterano, que se refere ao mais antigo (numa profissão, num curso, etc.)
aetas, aetatis (f.): idade; tempo; geração — daqui vem o português etário
interit : 3ª pessoa do singular do presente do indicativo de intereo (composto de inter + eo), is, ire, iui, itum ; perder-se, desaparecer; acabar; extinguir-se
florent : 3ª pessoa do plural do presente do indicativo do verbo, de tema em -e, floreo, flores, florere, florui : florir; florescer; brilhar [ o sujeito é o mesmo da oração anterior — as palavras ]
uigent : 3ª pessoa do plural do presente do indicativo do verbo, de tema em -e, uigeo, es, ere, uigui: ser forte, cheio de vida; estar vigoroso
ritus, ritus (m.): uso, costume; modo
iuuenis, iuuenis : jovem
iuuenum ritu : à maneira dos jovens
modo : recentemente; há pouco
natus, a, um (particípio passado do verbo nascor, nasceris, nasci, natus sum : nascer)
nata (nom. do plural neutro, refere-se a uerba do verso anterior)
modo nata : aquelas (palavras) há pouco nascidas
Tradução total:
Tal como as florestas se transformam quanto às folhas [ ... mudam de folhas] no findar dos anos, caem as mais antigas, assim também a velha geração das palavras se extingue, e à maneira dos jovens, aquelas há pouco nascidas florescem e ficam cheias de vida.
Questões gramaticais:
Flexão verbal:
Verbo irregular : eo, is, ire, iui / ii , itum : ir
Particípio presente : iens, euntis: indo, que vai ou ia
Imperativo presente: i : vai. ; ite : ide
Compostos: exeo, exis, exire, exiui / exii, exitum : sair
transeo, transis, transire, transiui, transitum: ir para além, atravessar
Bonum uinum laetificat cor hominis (provérbio medieval)
Verba uolant, scripta manent (provérbio)
Dois interessantes provérbios, de fácil compreensão e tradução.
Vejamos:
— como sujeito uma palavra do género neutro — uinum, uini “vinho” — com o adjectivo a concordar — bonum
— a forma verbal — laetificat — lembra-nos o adjectivo laetus “alegre”
É deste adjectivo laetus (no acusativo “laetum”, visto ser o acusativo o “caso etimológico”, isto é, aquele de onde deriva a maior parte das palavras portuguesas) que vem o português “ledo” (= alegre), tão presente em Camões:
“ Aquela triste e leda madrugada” (soneto)
“Naquele engano de alma ledo e cego” (Os Lusíadas, episódio de Inês de Castro)
Lembremos também o nome próprio Letícia
Então o verbo laetificare significará “alegrar”
— como complemento directo de laetificat temos “cor hominis”
cor, cordis (nome neutro) significa “coração”
Com esta palavra se relacionam pela etimologia, os vocábulos portugueses:
— cordial
— concordar
— acordar
— saber de cor
— hominis é complemento do nome cor — trata-se do genitivo de homo
Então:
Um bom vinho alegra o coração do homem.
2.
O segundo provérbio remete-nos para a importância da gravação de tudo o que é importante, visto que o que está escrito jamais se perderá:
As palavras voam, os escritos permanecem.
— temos dois nomes neutros, ambos no nominativo do plural, cada um deles servindo de sujeito a uma forma verbal:
— uerbum, uerbi “palavra”
uerba — é o sujeito de uolant, do verbo uolare, que está na origem do português volante, volátil
de uerbum vem o português :
verbo
verbal
verbalizar
— scriptum, scripti significa “escrito”, “texto escrito”
scripta — é o sjeito de manent, do verbo manere “permanecer”